2.12.08

VIVER NÃO É DEMAIS

Daqui, da planície dos telhados
quando a brisa duriense se atordoa
do gritar das andorinhas e pardais
no fim de tarde de Outono
eu digo que viver não é demais.


Desta lição das horas escoadas
por entre a fímbria de ilusões finais
o ar tingido, as casas encostadas,
vai pelo Douro abaixo o meu poema
enquanto eu sinto que viver não é demais.


Enquanto digo que viver é muito mais
passeia a tarde pela luz de Outono
enfim acalmo com as primeiras sombras
no mostrador do tempo nem os dias são iguais.


Fernando Morais

10.9.08

CANTO DE SOLIDARIEDADE A ERNESTO CARDENAL, PADRE E POETA DA NICARÁGUA E DO MUNDO

condenaram-te cardenal
foi o poder do dinheiro
tens novamente o madeiro
cujo peso conheces bem
condenaram-te cardenal
por seres o mensageiro
de quem no mundo nada tem


condenaram-te cardenal
ortega era companheiro
lutou pelo mesmo ideal
mas num golpe traiçoeiro
valeu-se da toga do mal
sorriu para o forasteiro
prostituiu-se ao capital


condenaram-te cardenal
com a cruel humilhação
pior que golpe de punhal
pior que as grades da prisão


condenaram-te cardenal
pena que não se repara
joão paulo também o fez
naquele turismo papal
o dedo na tua cara
era o dedo da estupidez
prepotência pontifical
falando em nome do burguês


condenaram-te cardenal
fizeram-te réu outra vez
quem da terra quer ser o sal
recebe em troca insensatez


condenaram-te cardenal
mas não há pena que dobre
o teu canto universal
poeta do cristo pobre
nascido na estrebaria
e não em palácio real
padre irmão da poesia
o manto dela te cobre
não a capa do cardeal


Júlio Saraiva



Poema colhido em http://www.luso-poemas.net/, e aqui publicado com a autorização do autor, jornalista e poeta brasileiro.



9.9.08

Homenagens: PEDRO CASALDÁLIGA, O BISPO VERMELHO E POETA DE ARAGUAIA

«O motorista do ônibus não entendeu o português enrolado do homenzinho magro, calça de brim surrada, camiseta branca, e sandálias de couro. Estacionou o veículo na beira da estrada, para que o homenzinho descesse. E depois partiu. O homenzinho só havia pedido para urinar. O condutor não entendeu e o largou, tarde da noite, na escuridão da estrada. Este foi um episódio ocorrido com Dom Pedro Casaldáliga, missionário clareteano (da Congregação fundada por Santo Antônio Maria Claret), que havia acabado de ser sagrado bispo da miserável região de São Felix do Araguaia, até hoje conturbada por sangrentas lutas pela disputa da terra. Na época, fins da década de 1970, a situação era pior ainda: os órgãos de repressão do governo militar, instalado no Brasil em 1964, descobriram que ali estava sendo articulada a luta armada para pôr fim à ditadura. Naquela noite, Pedro Casaldáliga pediu abrigo na casa de um camponês, que ainda não o conhecia. Ao dizer que era bispo, o camponês, antes de lhe dar pousada, sorriu e disse, vendo-o naqueles trajes: "Se o senhor é bispo, eu sou o papa. Mas pode entrar." Pedro Casaldáliga juntou-se à luta do seu povo simples e massacrado. Escondeu guerrilheiros. Teve sua extradição pedida pelos latifundiários.
Recebeu advertências do Vaticano, que fingiu não entender. Foi jurado de morte diversas vezes. Hoje, aposentado, não retornou a Espanha, preferindo continuar no meio dos índios e posseiros, mesmo contra a vontade dos seus superiores.
O ritual da sua sagração episcopal foi diferente dos demais. Dispensou todas as pompas. Não deitou no tapete vermelho, mas sim numa esteira de vime, às margens do rio Araguaia. Em lugar da mitra, usou um chapéu de palha de pescadores. Em lugar do cajado episcopal, um par de remos. O anel foi enviado à mãe na Espanha e trocado por uma modesta aliança de casca de coco. Palácio? Como palácio, monsenhor optou por uma choupana idêntica a do povo local. Escreveu um diário, vários poemas, e é co-autor do texto da Missa do Vaqueiro, musicada pelo compositor Milton Nascimento. De sua obra de poeta, extraio este texto:


CANÇÃO DA FOICE E DO FEIXE


Com um calo por anel
monsenhor cortava arroz.
Monsenhor "martelo
e foice?"
Me chamarão subversivo.
E lhes direi: eu o sou.
Por meu povo em luta, vivo.
Com meu Povo em marcha vou.
Tenho fé de guerrilheiro
e amor de revolução.
E entre Evangelho e canção
sofro e digo o que quero.
Se escandalizo primeiro,
queimei o próprio coração
ao fogo desta Paixão,
cruz de seu mesmo Madeiro.
Incito à subversão
contra o Poder e o Dinheiro.
Quero subverter a Lei
que perverte ao Povo em grei
e ao Governo em carniceiro.
(Meu Pastor se faz Cordeiro
Servidor se fez meu Rei.)
Creio na Internacional
das frontes alevantadas
da voz de igual para igual
e das mãos enlaçadas...
E chamo a Ordem de mal
e ao Progresso de mentira.
Tenho menos paz que ira.
Tenho mais amor que paz.
...Creio na foice e no feixe
destas espigas caídas:
Creio nesta foice que avança
uma Morte em tantas vidas!
- sob este sol sem disfarce
e na comum esperança -
tão encurvada e tenaz!


Pedro Casaldáliga


Júlio Saraiva»


Texto de Júlio Saraiva e  poema do bispo e poeta Pedro Casaldáliga, publicados, por JS, no blogue: http://www.luso-poemas.net/, e republicados aqui com a sua autorização.

31.8.08

Ernesto Cardenal

Cito: de Jornal de Notícias de 31 de Agosto de 2008, Cultura, Literatura:
«Saramago apoia poeta perseguido pela justiça
O poeta e sacerdote nicaraguense Ernesto Cardenal, de 83 anos, enfrenta actualmente a justiça da Nicarágua e o Governo do presidente Daniel Ortega, ao ter sido condenado por injuriar um empresário alemão na disputa de terras.
O intelectual nicaraguense, dissidente sandinista e considerado um dos mais importantes poetas vivos da América Latina, recebeu já o apoio de dezenas de escritores, entre os quais o português José Saramago, o chileno Antonio Skarmeta e o uruguaio Eduardo Galeano.
   "Ernesto Cardenal, um dos mais extraordinários homens que o sol aquece, foi vítima da má consciência de um Daniel Ortega indigno do seu próprio passado, incapaz agora de reconhecer a grandeza de alguém a quem até um Papa (João Paulo II), em vão, tentou humilhar" em 1983, escreveu Saramago. Numa alusão a Ortega, o escritor português acrescentou que "uma vez mais, uma revolução foi atraiçoada por dentro".
   Cardenal foi condenado, por um juiz de tendência sandinista, a pagar uma multa de 20.000 córdobas (pouco mais de mil dólares), sob a acusação de injuriar o empresário alemão Inmanuel Zerger.
   O poeta, que entretanto denunciou perante o Centro Nicaraguense de Direitos Humanos, estar a ser vítima de perseguição, recusa acatar a sentença, que diz ser "injusta e ilegal" e uma "vingança" de Daniel Ortega por ele, Cardenal, ter sido recebido com honras durante a tomada de posse do presidente paraguaio Fernando Lugo, à qual o governante sandinista decidiu não assistir.
   Nascido em 20 de Janeiro de 1925 em Granada, Cardenal foi ordenado padre em 1965 e em 1979, com a chegada dos sandinistas ao poder, integrou a Junta do Governo como ministro da Cultura, entre 1979 e 1990.
   Cinco anos antes de sair, em  1985, foi suspenso "ad divinis" pelo Vaticano, que considerou incompatível a sua missão sacerdotal com o seu novo cargo político.»[...].


Suspenso "ad divinis" e perseguido "ad hominem", eis a «pedra no meio do caminho» do poeta, sacerdote e  Homem da Cultura.


Aqui  subscrevo o meu apoio a Ernesto Cardenal.




Domingos da Mota

28.8.08

«Sinais dos tempos»

Comentário tardio a  parte da crónica «Por outras palavras», de Manuel António Pina, no Jornal de Notícias de 25 de Agosto de 2008:


"Sinais dos tempos"


«O arminho é um pequeno animal (mede entre 15 e 30 centímetros e pesa pouco mais de 200 gramas) incluído no Anexo III da Convenção de Berna (espécie ameaçada, parcialmente protegida e sujeita a regulamentação especial). Para seu azar, seu tão grande azar, tem uma pele felpuda e bonita, que fica bem em adornos ricos como o "camuro" (gorro) e a mozela (estola) de veludo com que  Bento XVI, recuperando o luxo pré-tridentino, agora se exibe, em vistoso conjunto  com os seus famosos sapatos "Prada". O Papa está atento aos "sinais dos tempos", como prescreve o Vaticano II.»


Atento também aos sinais e aos tempos, ao hábito de burel e às sandálias de «el Poverello», e ao refinado diapasão do cronista, salmodio piamente:


Santa ostentação,
Santo luxo, tão bento,
Santa ecologia,


Rogai por nós.


Domingos da Mota

23.8.08

Toada do peixespanto

        Não, Àrtur,  se tenho dó
        é de mim, que, para ti,
        pelo que vi e não comi,
        um peixe nunca vem só...


        Alexandre O'Neill




Ouvi dizer que o durão,
se fosse peixe amestrado,
seria cherne / se não
um salmonete escalado:
peixe-barroso?, pimpão?,
peixe-frade acolitado?,
peixe-rato?, peixe-cão?
- No mar alto da ambição
de peixe-galo cantado.


Ouvi dizer que o durão,
se fosse peixe acossado,
seria solha / ou então
um carapau alimado:
peixe-diabo?, tritão
do peixe-gato escaldado?
Xaputa de boqueirão!
- Do tamboril ao cação,
até ferve o linguado.


Cuido porém que o durão,
esse peixe apregoado,
mais parece um lingueirão,
um safio refinado:
pata-roxa?, tubarão?,
agulhão dissimulado?
- De peixe-espada na mão,
mais um destro cortesão
do peixe-rei / do mercado.


© Domingos da Mota

11.8.08

Figurações

          água-forte em relevo


Era uma vez um país
embolado a navegar
no alto do seu nariz,
e à beira de naufragar.


Um país de tiranetes,
de santarrões no altar,
de barões, de baronetes,
de validos, de valetes
por aí a desfilar;


um país de figurões
carregados de negaças,
onde os galos e os capões,
a mando de passarões,
arreganham ameaças;


um país de sectários,
de falsários, de falsetes,
de caciques, de sicários,
cães de fila, mercenários
e de espirra-canivetes;


um país de saltimbancos,
de palhaços, bailarinos,
de tartufos, e de tantos
morcegos e olhimancos
à caça de gambozinos;


um país de gente fina,
gente de fé, impoluta
que tresanda e peregrina
entre a vénia e a verrina
com a língua mais hirsuta.


E o país de nepotes,
fura-vidas, fura-bolos,
de fariseus, de zelotes,
de volteios e pinotes
e chuva de molha tolos,


bruscamente acometido
pela febre e pela aragem,
perde o pé e o sentido:
entrega o ouro ao bandido:
e é fartar, vilanagem!


Um fartão de pesporrências,
destemperos, desconchavos,
de mordaças, de impudências,
e de pardas eminências
de um bando de patos-bravos.


Nesse país de opereta,
o regente, sem batuta,
segue a toque da trombeta,
dos fagotes, da veneta
de grandes filhos... / da pauta.


Era uma vez um país
levantado à beira-mar
a sacudir a cerviz
e com pernas para andar.


© Domingos da Mota